Mitos Demitidos

Tuesday, May 10, 2005

Brincar com Pareto em 2085

Estamos no ano de 2065. Algures num laboratório um especialista em neuro-tecnologia ergue um chip com a ajuda de uma pinça esterilizada. O sobrolho atenta ao que o olho, por entre uma lente potentíssima, observa. O contentamento esboça-se em sorriso e o sucesso desenha-se em poucas semanas.
Slogans ecoam em jornais, hologramas urbanos espalhados pela via pública, ecráns gigantes e bocas dos transeuntes curiosos. Tudo e todos denominam este invento como o invento do século.
Finalmente é possível, com um simples chip colocado junto das papilas gustativas, controlar os influxos de alimentos de forma a tornar saudável qualquer dieta. Isto é realizado da seguinte forma: 1) o indíviduo olha o mostrador do seu self-carrier (que não é mais do que um computador portátil do tamanho pouco superior ao de um pequeno relógio de pulso); 2) Este indicar-lhe-á os seus níveis actuais de proteínas, vitaminas, cálcio, nível de ferro no sangue, glóbulos brancos, glóbulos vermelhos e outros dados desta natureza; 3) Sugerirá também algumas combinações possíveis de alimentos (com a respectiva dosagem) de forma a que o indíviduo mantenha os seus níveis (no caso de se apresentar um corpo saudável) ou melhore a sua condição física; 4) Repetirá o ponto 1 ao 3 sempre que lhe seja sugerido.
Nos primeiros anos o sucesso e a melhoria da saúde das pessoas, que usavam os tais carrier, foi avassaladora. Quem se recusava a adoptar tais avanços cientificos evidenciava uma esperança média de vida inferior aos demais. A diferença destas taxas não era muito elevada mas a sua simples existência era um louvor à ciência.
Contudo, os anos passaram e aos poucos, as pessoas começaram a ignorar o carrier antes das suas refeições, começaram a negligenciar os seus conselhos aquando de alguns excessos de vinho, doces, sal e fritos em dias de festança e a funcionalidade do chip foi decaíndo aos poucos. Houve mesmo quem debatesse que a culpa dos excessos seria a consequência da própria utilização do carrier. Segundo estes, o carrier funcionava como um cinto de segurança (foi esta a metáfora usada pelo médico de clínica geral em debate público) considerado como infalível pelos seus utilizadores, levando muitos aos abusos de velocidade e aos excessos de confiança, como se este os pudesse salvar de qualquer falta de atenção na sua condução das suas vidas.
O cientista, que em 2065 sorria, teve que voltar aos seu projecto para que o sorriso não esmorecesse no malograr do invento do século.
Durante meses debruçou-se, não sobre livros sobre ciências exactas, mas, por estranho que pareça, sobre livros de psicologia e psicanálise.
Finalmente, chegou à conclusão que o ser humano é um ser desviante por natureza, um ser que repete de forma ciclíca, e vezes sem conta, os mesmo erros, um ser hobbesiano que é o mesmo que dizer que é socialmente corrupto. Leu sobre a Terapia da Aversão e, apesar de a considerar cientifico-medieval, não a abandonou completamente. Num momento de lazer, e de estranhissima coincidência, decidiu ver um dos filmes clássicos que o inspirou e o levou ao re-sucesso do seu invento. O nome do filme Clockwork Orange, e o
ancião Kubrick foram os inspiradores.
O modelo 1.2 surgiu no mercado. Os níveis de saúde subiram a pique mas os níveis de satisfação desceram quase tão vertiginosamente quanto o desagrado pela forma brutal como os desejos individuaias passaram a serem controlados. E, mesmo sabendo que tal era para o bem estar dos seus utilizadores, o ser humano, que atinge a sua maioridade, sentia que já era tempo para de deixar de ter esse poder 'paternalista' a controlar a sua vontade a qualquer hora. O preço pela saúde era a perda de liberdade e do individualismo.
Mas foi aqui, exactamente em 2082, que o nosso cientista deixou de ter relevância, não pela falta de ideias e pela perda de genialidade, mas porque os governos começaram a considerar poder desempenhar também eles o seu papel de génios nesta história.
E, assim, com o recurso a equipas de cientistas de todas as áreas cientificas imaginaveis e inimagináveis começou-se a desenhar o novo sistema coercivo do futuro.
Aos poucos, o chip começou a ser obrigatório. Aos poucos, o chip começou a deter toda a informação de qualquer individuo, quer da sua saúde mas também dos seus registros criminais, BI, cartão de contribuinte, cartão de eleitor, passaporte, vínculo à entidade patronal, etc. Aos poucos, o chip começou a assumir o papel coercivo de manter o ser humano no bom caminho, provocando dor física a quem quer que atentasse contra qualquer regra social. Este processo não foi automático até porque o desenhar de todas as regras, e mais importante e complicado do que isso, o por em prática destas de forma a serem lidas pelo chip, levou algum tempo. Contudo, o número de participantes neste processo, bem como os overtimes não revelados a público, fez com que o novo chip tivesse um 'go alive' record. E, assim, a questão 'será que necessitamos da força policial?' foi levantada até porque este parecia, para todos os efeitos, um perfeito substituto da guarda policial. Substituto porque controlava na raíz qualquer tentativa de desobediência civil. Perfeito porque evitava o crime, a procura do culpado, o processo judicial e todos os custos de manutenção de toda esta perversão social. A perfeiçao avizinhava-se. O óptimo social, só possível nos modelos utópicos de hipóteses simplificadas, e desadequadas da realidade, parecia tão real quanto o foi a descoberta da Índia por Vasco da Gama. Pareto passou a mito. Pareto morreu.
Contudo, vindo do mundo dos mortos, Pareto ressuscitou quando alguém, um dia, por triste ou feliz acidente, dependendo da subjectividade de opiniões, cortou a sua própria língua e impôs, assim, o seu ser individual a uma sociedade homogeneizada pelo novo carrier totalitário. Esta divergência, não vísivel aos outros, foi a semente que fez nascer a flor do individualismo no deserto das massas.
E então, este, não estando debaixo das mesmas restrições dos demais, gozou de uma satisfação individual bastante superior à mesma que teria enquanto ser social. E fê-lo sem punição, sem julgamentos e, mais importante do que tudo, sem valores moralizadores originadores do remorso (outro sentimento social substituído pelos valores de bom selvagem). O remorso era resultado da educação de valores hereditária. Contudo, esta sociedade há muito havia substituído qualquer educação de prevençao pela própria prevenção sem necessidade de educação.

Wednesday, January 05, 2005

Buying big

Um indíviduo de meia idade, calças armani, camisa ralph lauren dobrada duplamente nas mangas, cinto excessivamente caro para o propósito, sapatos reluzentes bem acima dos 'cem dolars' aproxima-se do Fast Consume me place.

Olha o cartaz luminoso, disposto superiormente, onde os vários menus se encontram listados. Olha-os com a desatenção típica de consumidor frequente mais preocupado em analisar alguma pequena novidade compensatória que tenha surgido. Os menus não parecem ter mudado apesar do ano ser novo. O pensamento de que este estabelecimento talvez tenha dado 'aquilo que tinha a dar' veio-lhe à cabeça, juntamente com o sentimento depressivo de estar demodé, out of fashion. Essa sensação quase lhe furtou a vontade. Foi aquele ardor estranho de garganta, o engolir em seco, a vergonha incontrolável. Mas não é para tanto, pensou ele acomodando-se ao seu novo argumento. O primeiro menu indica:

1. Conversa sobre os temas da lista 1 (esta aparece mais abaixo asteriscada e descrita como contendo temas como: cinema, teatro, artes plásticas, pintura, história da arte, etc etc.) durante o período curto (meia hora) - 7, médio (45 minutos) - 9 ou 'large' (uma hora) - 10,5.

O segundo menu é quase idêntico ao primeiro, excluindo a parte em que faz menção à lista 2 mais dada aos desportos radicais outdoors. É salutar ao ego fazer publicidade das actividades dispendiosas e, por essa razão, o menu 2 é escolhido com frequência.
O terceiro é igual ao segundo. No entanto, este assenta em actividades desportivas indoors. Este é outro dos menus de procura elevada, pelo status luminoso que apresenta.
O quarto varia exactamente no mesmo ponto, ou seja, na temática. Aborda a política, religião e ciência. Fica bem mostrar fingir saber sobre estes. Mesmo quando os únicos conhecimentos sejam acessórios e desprovidos de sustentação que é dada pelo entendimento.
Mais abaixo, separado por cornucópias coloridas e pelo símbolo da marca em fade out, repetido de forma incessante, vem o grupo de menus que envolve o quinto, sexto e sétimo. Estes são mais baratos, custando apenas 5, 6 e 6,5. São iguais aos primeiros, mas os intervenientes são de categoria 2. As categorias não são gradativas em qualidade do diálogo em causa ou da capacidade de exposição de assuntos pertinentes e interessantes. Contudo, estes intervenientes escolhidos para o efeito são mais idosos, menos vistosos fisicamente e, consequentemente, menos requisitados. Ora, num mercado simples de concorrência perfeita o equilibrio entre oferta e procura determina um preço. E o preço apontado é esse.
O indíviduo de meia idade abre a sua carteira de pele, destacando orgulhosamente as letras DKNY, e retira um maço de notas. Apesar de ter a noção que tirou mais do que precisava, contabiliza o ego, e dá a nota ao rapaz fardado de boné ridículo. Este segundo, esboça um sorriso servil mas honesto, que reluz destacando os neons fortes que iluminam todas as imperfeições das suas gengives.
- Um três large!
- Tem cinquenta cêntimos?
- Não! tome 12 e fique com o troco...
O rapaz continua a sorrir. O outro sorri por conveniência.
- O ser social vem já aí...por favor pode sentar-se em qualquer lado da zona 4 por favor. A zona quatro será...
Fica bem interromper aqui de forma brusca e petulante.
- Eu sei onde é a zona 4! Deixe...

Saturday, October 30, 2004

Mito do Labirinto vs Mito da Vida

Da necessidade de tentar explicar a minha condição humana e os fenómenos, que regem a minha psicologia, surge a mitologia paradigmaticamente plástica. Neste cenário, acontece a história de Ricardo, um homem criativo, louco por vezes, conhecido por lunático e festeiro q.b . Um dos seus maiores feitos foi o Labirinto mental, construído a pedido da sua dúvida, relativamente ao futuro, com o objectivo de aprisionar a decepção, besta que se alimentava da ansiedade e ambição. Por ter atingido a maioridade na tomada de decisões, e por não perscrutar um caminho claramente delineado, ele foi lançado, juntamente com a sua expontaneadade, no Labirinto. Sabendo que era impossível sair do Labirinto e, vendo-se diante de uma situação crítica, sabia que teria que se superar, planeando e executando a sua fuga. Demonstrando mais uma vez o talento que lhe era devido, teve, então, a idéia de construir asas para que ele e a sua expontaneadade pudessem fugir. Juntando penas de sonhos, amarrou-as com fios de linho e colocou uma camada de memória sob elas, para que não se descolassem. Amarrou as asas na expontaneadade e preparam-se para a grande fuga, provando que o Labirinto, ao invés de ser seu fim, foi apenas uma oportunidade para que provasse sua ilimitada capacidade criativa e de sobrevivência. Antes de partir, porém, advertiu a expontaneadade de que deveriam voar a uma altura média, nem tão próximo do deslumbramento, para que as elevadas expectativas não derretessem a memória, que colava os sonhos, nem tão baixo, que pudessem cair na monotonia mortal. Assim, ele levantou vôo, ainda receoso da vida, e foi seguido pela expontaneadade. Durante o vôo, esta deslumbrou-se, achando poder dominar a vontade, achando poder vencer sózinha. A memória dos sonhos começou rapidamente a derreter, a ilusão tomou lugar, e caiu na monotonia. Quando ele percebeu que a expontaneadade não o acompanhava mais, olhou para baixo e viu os sonhos a flutuar na perdição. Apesar do sofrimento, ele sabia que estava vivo, sabia que os sonhos realmente nunca morrem e sabia que um dia iria desenhar novos sonhos, à imagem dos anteriores, e rumar à felicidade...

Thursday, October 28, 2004

O caso do cantil descurado

O caso do cantil descurado é um caso de extrema recorrência nos filmes hollywoodescos clássicos e menos clássicos.

Imaginemos uma cena passada algures num deserto tórrido, num daqueles dias em que a própria imagem parece distorcida, cambaleando como se o setting estivesse a derreter. Vários indíviduos estão em visível sofrimento e, puxando dos seus cantis como forma a atenuar essa dor, descobrem que não têm uma única gota de água. Que fazem eles perante este facto? Ou melhor, que fariamos nós numa situação semelhante mas real? Eu guardaria o cantil tendo a esperança de vir a encontrar água, ou pelo menos alguem que ma providenciasse. Mas, em qualquer filme que se preze, o cantil é sempre descurado e deitado fora, sem dó nem piedade.

Será que isso faz sentido? Trata-se afinal do quê? De um acreditar na morte iminente ou de uma situação milagrosa que venha em socorro da personagem?

Acreditar no primeiro dos casos quase nunca encaixa no perfil da personagem em questão (geralmente estamos face a heróis ou tipos destemidos) e a probabilidade de algo acontecer que salve a personagem numa situação como esta é tão ínfima que nem o QI mais humilde poderá aviltar.

Por isso a dúvida persiste e a única explicação que encontro é o acentuar o plot e o lado visual do acto. No entanto, não é plausível nem merece aplauso tal explicação.

Mito da Sereia

A sereia influi um conceito interinsecamente associado à sensualidade. O desejo animal do homem pela mulher. Na verdade, uma sereia será sempre uma criatura de seios avantajados e de cabelos longos lisos, que reluzem com a luz (secos e bem tratados, por mais estranho que possa parecer). E isso, de facto, é um estímulo ao sexo contrário. Mas que dizer do restante corpo? Escamas! Será que estas terão algum papel estimulante? Não me parece...não existem as formas que tradicionalmente e de forma naturalmente Pavloviana despertam a libido no animal masculino de caminhar recto. Este para se estimular precisa de pernas nuas e lisas cobertas de uma pele macia e sedosa. Necessita de visualizar um traseiro atractivo, firme. E finalmente dos pelos pubicos, que são tipicos do mamifero, e que ajem de forma afrodisiaca no sistema nervoso complexo do observador. Bem, neste caso, como é que estas criaturas miticas podem ser criaturas sexuais? As respostas podem ser várias. A resposta racional de associar este ensejo humano, derivado da carência de individuos do sexo feminino em alto mar, a um acto de desespero. Isto é, após meses sem ver terra e sem ver uma única mulher não me admira mesmo nada que alguns conseguissem imaginar mulheres emergindo das formas sensuais deixadas pelas ondulações do mar. Ou, então, a resposta poderia ser de cariz romantico e associar o sentimento platónico (com um inexistente acto sexual consumado, pela falta de compatibilidade física) à poesia...ao lirismo do amor...algo de tão vago e de tão pouco esclarecedor...mas de infinita beleza e nobreza.

Tuesday, October 26, 2004

Richard Dawkins

Unweaving the Rainbow:Science, Delusion and the Appetite for Wonder
by Richard Dawkins, 1998

"My title is from Keats, who believed that Newton had destroyed all the poetry of the rainbow by reducing it to the prismatic colors. Keats could hardly have been more wrong, and my aim is to guide all who are tempted by a similar view, towards the opposite conclusion. Science is, or ought to be, the inspiration for great poetry."

Tem piada. Há coisa de uns 3 ou 4 anos atrás fui acusado de anti romantico, insensível e outros adjectivos menos próprios de um ser humano bom e recto. E fui, exactamente por acreditar, sem restrições de qualquer natureza nem tabus romantizados, que a ciência explica qualquer fenómeno orgânico e não orgânico. Que por detrás de qualquer espirro, qualquer devaneio criativo, qualquer sentimento de desejo, de altruismo, de amor puro estão um conjunto de fórmulas dinâmicas de variáveis complexamente desenhadas. Tudo o que nos rodeia, seja o que nos é visível a olho nu, seja o que passa pelo mundo dos sentimentos, é desenhado num mapa de modelos matemáticos. A matemática assassina a poesia do sentimento? Não me parece. E aí partilho do sentimento de Richard Dawkins.

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